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domingo, 11 de abril de 2010

Fênix




Ana viveu nas ruas a vida inteira. Aprendeu a traficar, a abrigar-se da chuva em lugares sujos e sombrios, a tapear a fome com cola e a fugir sorrateiramente da polícia. Lembrava-se vagamente de quando era criança, não conhecia o pai e sabia que a mãe fora prostituta e que, das relações que tivera, nasceram os filhos. Todos os irmãos tornaram-se traficantes. Vira um irmão atear fogo no próprio corpo e uma irmã ser assassinada pelo tráfico, dos outros não sabia nada. Não gostava de lembrar da infância, pois sabia que estava seguindo o mesmo destino de sua mãe, mas não sentia força para mudar isso e nem via expectativa de melhora, o jeito era aceitar.
Faísca, seu companheiro de corres, não tinha uma história diferente da dela, por isso eram cúmplices de tudo. Furtavam, cheiravam e até participavam de orgias juntos. Não havia limites, nem compromisso com nada, havia apenas a liberdade e a parceria de um com o outro.
Era sexta-feira e já estava na hora de ir para a biqueira. O Boca havia depositado toda a confiança neles. Era muita responsabilidade ser gerente da biqueira e Ana gostava, preferia essa vida. Antes fazia programas e muitas vezes tinha que ficar muito “louca” para poder sair com os caras. Agora não, só precisava ser ligeira e isso sabia fazer muito bem.
- E aê, mina, cadê a mercadoria? Os boys tão loco quereno as pedras.
- Fica sussa, Faísca. Eles trouxe bagulho de primeira. Pode pá que os boys vão recebê as pedras inda hoje.
- Fechô.
Nada saía errado. Os boys subiam o morro para comprar vários tipos de drogas e tudo ocorria tranquilamente. Durante o dia a favela era um lugar tranquilo, mas à noite, enquanto, os moradores dormiam, os becos fervilhavam de pessoas comprando e vendendo mercadorias.
Ana gostava de passar à noite trabalhando na favela e não tinha raízes, pertencia ao mundo. Não se prendia a nada, nem a ninguém. Era moça, tinha 16 anos e já era mãe. Fora mãe aos 12 anos, não tinha vínculo materno e nem ao menos sabia onde estavam os filhos. Um de seus companheiros, o Fera, de vez em quando, ainda dormia com ela, mas não tinha amor. Era apenas atração física.
Era mais um dia de trabalho e a jovem fora para o seu posto. Quando chegou, percebeu que havia algo errado. Faísca veio em sua direção e estava com a expressão de desespero no rosto.
- Mina, miô. Os polícia pegô o Boca e agora não há lei na quebrada. Vambora.
- Tá loco. E a irmandade? Nóis vai dexá os parceros agora? Se nóis fugi, eles vai dizê que nóis é traíra. Qué morrê?
- Não, mas se os polícia pegá nóis, nóis vai preso. Eu num quero sê preso de novo, é mó zica.
Ana fez menção de que ia rebater, mas achou melhor não. Afinal, sabia como as coisas funcionavam e não queria correr riscos. Concordou em fugir, mas sabiam que não seria fácil, pois a favela estava cercada e as chances de serem pegos era grande. Havia muita correria e troca de tiros. Naquele momento venceria quem tivesse mais força e a morte parecia iminente. Entravam e saíam de becos sem encontrar saída. A favela parecia um labirinto e o medo começava a tomar conta.
Faísca se lembrou que o barraco do Bichero estava vazio e seria um bom esconderijo.
- Ana, o barraco do Bichero tá vazio mó cara. Como eu não pensei nisso antes? Vamo pra lá agora.
- Ta loco! O barraco fica próximo do QG. Os polícia ta tudo lá. Nóis morre se voltá.
- A caminhada é a seguinte mina. Nóis póde voltá pr’outro caminho, beleza.
- Num sei. Tô com medo e se miá?
- Pode pá que é nóis. Os polícia não vai vê. Fica sussa.
Começaram a andar, mas Ana sentia o coração apertar, temia por si e pelo amigo. Faísca era seu melhor amigo, considerava-o um irmão.
Chegaram no barraco e por sorte ele não estava trancado. Faísca abriu a porta devagarinho e mal teve tempo de se mover quando sentiu uma dor imensa e começou a ver tudo girar a sua frente. Ana que estava atrás dele só teve tempo de segurar o amigo em seus braços. Lágrimas sentidas corriam de seus olhos. Via escorrer o sangue do peito do amigo que estava baleado e gemia de dor.
- Força, parcero! Força!
Faísca não respondia nada, não havia mais gemidos, apenas um corpo gelado nas mãos da amiga. A cena foi tão forte que Ana desmaiou.
Passaram-se dois anos e Ana ainda sentia muito quando lembrava daquela noite, a morte do amigo a marcara profundamente e após o choque decidiu mudar de vida. Estava casada, tinha dois filhos e um marido que amava muito. Nem de longe lembrava aquela adolescente do passado. Freqüentava a igreja, participava das atividades da comunidade e até possuía um projeto que ajudava adolescentes em situação de rua.

Ikerly

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