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quarta-feira, 14 de abril de 2010

A troca


César, um pastor evangélico, poderoso e ambicioso empresário, dono de uma emissora de televisão, tinha uma grande equipe que trabalhava na TV por vinte e quatro horas, igrejas em várias partes do país e um grande público de fiéis. Seu braço direito, Marco, estava sempre fazendo pesquisas e trazendo ideias pra impressionar cada vez mais o público.
Em uma de suas buscas, o assistente descobrira, no Uruguai, uma mulher que dizia não professar nenhuma fé, e que estava sendo muito procurada por fazer milagres. Diante da descoberta, teve uma ideia, que expôs no mesmo dia em que, numa reunião com César, ouviu o ultimato:
- Faz muito tempo que não temos algo realmente chocante. Essas simulações de milagres não podem continuar por muito tempo. Não dá mais audiência como antes.
As investigações de Marco sobre a mulher ainda não tinham trazido resultado concreto, se ouvia sobre os testemunhos de milagres, mais nada. No entanto, pressionado pela fala do pastor, decidiu adiantar em que vinha trabalhando.
- Quero um relatório completo disso, Marco! - disse César.
Horas mais tarde, os dois se encontravam no estúdio gravando um "testemunho de milagre" que iria ao ar naquela noite.
- Vocês têm que ser mais convincentes! Não adianta só falar se não por expressão no seu rosto! Pense, você é a mãe de um menino que acabou de ter a vida salva pelo Senhor Jesus! - disse César, já sem paciência, para a novata.
Diante dessas dificuldades, César exasperado, diz a Marco:
- Quero que você vá até o Uruguai, vá até o inferno, se precisar, e traga essa mulher que faz milagres, aqui!
Uma semana mais tarde Marco chega ao seu destino. Sem muitas fontes procura o jornal que noticiara a história da mulher milagreira. Não foi difícil para ele convencer o jornalista a lhe dar informações sobre o paradeiro da mulher: mentiu que a filha estava morrendo de leucemia.
Teve então que viajar até o interior do país. Chegou em um vilarejo habitado por indígenas, na sua maioria. Mesmo falando um espanhol cheio de sotaque, conseguira ganhar a confiança do povo daquele lugar. Filmou vários relatos e testemunhos dos nativos. Foi hospedado por uma família que havia testemunhado o poder da mulher que fazia milagres. Ouvira, entre outras, a história de um certo senhor, conhecido por nome Antônio, que feriu o pé trabalhando na plantação. Em pouco tempo o pé começou a apodrecer. Este senhor fora um dos primeiros a recorrer à milagreira e, minutos depois da visita, só se via a cicatriz da ferida.
- Como a milagreira fez? Ela te benzeu, orou? Perguntou Marco.
- Ela me deu um papelzinho enrolado, com alguma coisa escrita. Orou, falava numa língua que não conheço, e me deu isso aqui (Antonio mostrou um patuá que estava usando no pescoço por debaixo da camisa), disse que nunca poderei tirar.
Assim que amanheceu, Sr. Antonio fez questão de levar Marco até a milagreira (assim era chamada pelos nativos e pela imprensa).
Entraram matagal adentro, avançaram por uma trilha durante cerca de quinze minutos até chegar em uma cabana precária, isolada do mundo. Impressionado, Marco fotografou a região antes de entrarem.
O senhor bateu na porta, que aparentemente estava fechada, mas se abriu revelando a imagem de uma mulher madura com ascendência indígena marcada no sangue e na face. A única fonte de luz vinha da porta aberta pelos visitantes.
- Senhora! Antônio veio em sua direção e beijou sua mão.
- Como se sente, Antônio? Perguntou a milagreira.
- Muito bem! Trouxe alguém que precisa de sua ajuda.
- Sim, eu sei, pode ir para sua casa, Antônio!
O homem se foi sem maiores perguntas. Ficou sozinha com Marco.
- Você não está doente.
Marco engoliu a seco, impressionado com a sabedoria da mulher. Percebeu que teria de ser cuidadoso.
- Eu não estou doente, senhora. Nem ninguém da minha família. Mas há muita gente doente de onde eu vim, e elas precisam de sua ajuda.
- Pode me chamar de Bel. Pediu a milagreira.
- Por que mora aqui, só e isolada, nessa cabana, nessas condições?
- Para não me contaminar com as influências materiais. Dedico-me a tornar a vida das pessoas mais longa aqui na terra, para isso tenho que estar envolta por outras forças.
- Preciso te pedir que venha comigo para meu país. Só por um tempo, se possível.
- Eu sabia que esse dia chegaria.
Então foram, Marco e Bel, para a capital. Pegaram o avião em direção a São Paulo.
César e sua equipe estavam preparando o grande público para uma surpresa. Haveria um evento, um grande show a céu aberto com a promessa de milagre coletivo, mas antes disso aproveitariam muito a presença de Bel para aumentar a credibilidade e a audiência da emissora.
Apesar do cansaço, Marco foi logo para a emissora, atendendo ao chamado de César.
- Que grande ideia Marco! Você não tem noção da legião que atraímos com essa milagreira. Aqueles vídeos que você mandou estão incrivelmente convincentes. Anunciamos que vamos apresentá-Ia no programa de hoje à noite.
- César, eu falei para ela que amanhã veríamos isso, como combinamos, lembra-se? Ela saiu do meio do mato, não está acostumada com TV e a fama. Temos que prepará-Ia!
- Vamos impressionar o público, HOJE! Já temos o ator que simulará um paraplégico e um milagre ocorrerá na frente das câmeras!
Marco conhecia César, ele teria que dar um jeito. Pegou o carro e foi até o hotel em que Bel foi hospedada, prepará-la para aquela noite.
Depois do almoço, Bel e Marco seguiam rumo à emissora, quando o celular de Marco toca.
- O ator contratado pra essa noite está doente, foi hospitalizado e não vem mais! – dizia César, do outro lado da linha.
- Tudo bem. Resolverei o problema.
Ainda de dentro do carro Marco ligou para um primo, pedindo para fazer esse favor. Ele achou graça, aceitou prontamente e disse que estava indo naquele instante para o estúdio.
Já no estúdio, César veio ao encontro de Marco e Bel, que era quase que o tempo todo traduzida por Marco. Mal chegara no Brasil e já não se sentia nada confortável, isso era visível. Foram interrompidos por alguém que veio anunciar a chegada de Pedro, o novo ator, primo de Marco. Bel ficou de longe observando quando ele entrou no salão e alguém chegou com uma cadeira de rodas e ele se sentou.
- Bel, isso foi feito de última hora. Tem muita gente esperando ver você fazer um milagre, não tivemos tempo de trazer um doente então só faça de conta que você está fazendo um milagre com ele. É um ator.
Horas depois, começavam a gravar.
- Senhoras e senhores, como eu havia prometido, aqui está um instrumento de Deus em pessoa, que vem com exclusividade pra "Deus é Salvação". Fazendo milagres em massa, salvando e curando almas e corpos. Apresentamos agora, de primeira mão, a Irmã BeI.
- Aqui está um fiel paraplégico.
Após uma longa encenação em que o pastor perguntava a Pedro quem era, de onde vinha, como adquirira a doença, de forma bastante dramática, César continuou:
- Você acredita que essa mulher aqui é um instrumento de Deus em pessoa, meu jovem?
- Claro, com toda fé no Senhor Jesus.
- Senhoras e senhores, agora vocês presenciarão o primeiro de muitos milagres realizados por Bel na “Deus é Salvação”.
Por trás das câmeras Marco fez um gesto para Bel por o papel na boca de Pedro.
Bel estava suando e respirando forte. Num gesto rápido ela coloca o papelzinho que lhe deram na boca de Pedro como se fosse o real, usado por ela nos seus verdadeiros milagres.
Pedro começou a mover vagarosamente os pés, fez como se estivesse emocionado. Apóia-se em César diante das câmeras e se levanta. Todos atrás das câmeras começam a aplaudir. Bel se retira sem dizer nada.
- Está perfeito! Disse César animado e satisfeito com o resultado."É isso mesmo, isso vai ao ar!".
Todos iam se retirando quando Pedro chamou Marco.
- Marco, não consigo mover minhas pernas!
Marco olhou para trás e não viu mais BeI.
- Você deve estar impressionado garoto. Encarnou de vez a personagem, isso vai passar logo! Disse César sem dar importância.
- Não sinto mais minhas pernas! Pedro começou a gritar.
Mandaram que ele fosse levado para o hospital e continuaram lá, pois havia muito trabalho. O programa foi colocado no ar e fez muito sucesso, recordes de audiência.
Nessa noite Marco não conseguiu dormir, sentia algo ruim. Se arrependera de ter trazido BeI. Afinal não se sabia muito sobre ela.
No dia seguinte teria dois cultos, exibidos ao vivo com a presença de BeI. Um deles foi logo às 11:00 da manhã. O local estava lotado de fiéis. Havia até uma banda que compôs músicas e letras especiais pela presença de Bel. Colocaram-na no centro do palco, logo ao lado Marco que seria o tradutor, César o pastor e os funcionários que filmavam. Havia muito barulho, crianças pequenas começavam a chorar, César, nervoso, abafava os choros pedindo que a banda tocasse.
Prolongou-se a reunião por mais uma hora e meia e, ao final, algumas pessoas escolhidas ficaram, para tocar em Bel, tudo estava sendo filmado!
Terminado o show, Marco procurou César preocupado.
- Você acha que é normal o que aconteceu com meu primo? Liguei no hospital e disseram que Pedro ainda não sente as pernas, nos exames não consta nada!
- Já disse que isso é psicológico. Você quer que eu faça o quê? Digo a essa imensidão de gente que Bel é o diabo e que eu me enganei?
- Só sei que não estou gostando nada disso, César.
César mandou avisar que para o culto da noite não haveria crianças, elas ficariam numa sala reservada para não ter o mesmo imprevisto que de manhã.
- Mandei fabricarem quinhentos mil patuás, tem só um papelzinho lá dentro, leve para os aposentos de Bel e pede para ela benzer, ou sei lá, fazer o quê. Vamos vender isso hoje! Foram as palavras do pastor.
Marco foi para a sala reservada a Bel. Conforme se aproximava sentia que sua pressão subia, começou a ter náuseas, a transpirar.
- Bel? Chamou-a, não obteve resposta. Resolveu abrir a porta do quarto que estava encostada.
Ao olhar para dentro, viu que o quarto se encontrava envolto por uma penumbra. Marco viu Bel ajoelhada, diante de um ser encapuzado, que lhe passava uma energia ruim.
Nesse momento faz-se um barulho no corredor, Marco leva um susto, e grita. Bel acendeu a luz, levantou do sofá no qual estava deitada.
- Desculpe, não sabia que estava dormindo, disse Marco explicando-se. César mandou umas caixas repletas de patuás para você abençoar, que serão distribuídas no culto esta noite.
- Para serem vendidas, você quer dizer?
Marco deixou as caixas no local e se retirou.
Pouco tempo depois Bel foi atrás de Marco dizendo que estava pronto, cada patuá era como se tivesse sido feito por ela mesma. Ele preferiu ignorar o que Bel havia feito ou deixado de fazer. Simplesmente agradeceu e foi procurar César pra mostrar o trabalho feito.
- Perfeito! Chamem um pessoal que irá se infiltrar no meio dos fiéis, vendendo já uma parte dos patuás. Disse César.
Faltava uma hora para o culto começar. As câmeras e os equipamentos de filmagem estavam quase prontos e aproximadamente duzentos e cinquenta pessoas (capacidade máxima no templo de gravação) estavam em seus lugares. Havia ainda muita gente do lado de fora insistindo para entrar. Agora faltavam quinze minutos.
A música começou dentro do templo, Marco adentrou acompanhando Bel e os fiéis começaram a aplaudir e a chamar por ela. César já estava em seu posto no centro do palco. Anunciou que logo após o final do culto os patuás seriam ofertados no meio do público. A cerimônia foi mais tranquila, não variou muito o texto em relação ao culto da manhã.
Uma hora e vinte depois, faltando dez minutos para terminar, César ainda dava o sermão quando Marco, sentado num canto ao lado de Bel, notou um pequeno tumulto no meio da multidão. Ele só olhou para Bel que se levantou e foi à frente do palco, interrompendo César.
Ela esticou o braço em direção ao tumulto e começou a falar em espanhol. Marco, ao receber um sinal de César, começou a traduzir simultaneamente.
- Hoje está entre nós uma senhora de setenta anos, seu nome é Lurdes, com um problema crônico de hipertensão, foi trazida carregada pelos filhos. Tragam-na aqui!
Seguranças da emissora foram até lá e a trouxeram logo. Bel segurava um papelzinho que costumava dar aos doentes que a procuravam e um patuá. A túnica que ela vestia não tinha bolsos e Marco e César não sabia de onde ela havia tirado aquilo. Quando a mulher chegara até Bel no palco, ela começou a orar num idioma que ninguém mais sabia, depois a fez tomar a pílula e colocou o patuá no pescoço, pedindo para nunca removê-lo.
Todos ficaram boquiabertos, ninguém havia planejado aquilo. Enquanto isso milhares de patuás eram vendidos ao público, dentro e fora do templo.
- Foi incrível, Marco! Você não planejou isso, foi? Pergunta César.
- Não! Se eu não te conhecesse diria que você havia planejado!
Faltavam cinco dias para o grande show de milagres que seria realizado antes da partida de Bel. Ela havia dito que não queria mais aparecer na mídia antes dessa última apresentação e, nesses dias, milhares de outros patuás foram feitos, benzidos e vendidos. Os milagres de Bel foram notícia em várias redes de TV no país e no estrangeiro.
Marco não se conformava com o que ocorrera com seu primo. Estava levando a culpa por tê-Io convidado a atuar naquele programa e pela consequência. Temia Bel, sabia que ela não representava boa coisa e só queria que aquilo tudo terminasse. Então foi até os aposentos da milagreira.
- Bel, o que você fez com meu primo que não pode mais andar?
- Logo ele voltará a andar!
Marco sentiu um ar sarcástico em Bel, então se retirou sem meias palavras. No outro dia soube que logo de manhã seu primo acordou sentindo as pernas, como se tudo aquilo que passara fora somente um pesadelo. Ainda assim preferiu não agradecer a Bel, e ter o mínimo de contato possível com ela.
Chegava o dia do grande show. Alugaram um estádio e montaram uma tenda do tamanho do campo para abrigar os milhares de pessoas que marcariam presença. A previsão do tempo havia anunciado temperaturas altas, mínima de trinta e dois graus para aquele dia.
Enfim o domingo tão esperado, tudo seria transmitido ao vivo. Havia três bandas, mais quatro pastores que revezariam com César, cinquenta seguranças, e dezenas de obreiros trabalhariam nesse dia. Contavam vinte mil pessoas, todos usavam um patuá de Bel.
Marco recebe um telefonema de sua mãe dizendo que Pedro havia sofrido um ataque cardíaco, morte repentina.
Passadas algumas horas o povo estava eufórico, fazia muito calor e pediam a presença de Bel. César deu permissão. As bandas começaram a tocar e, minutos depois, a milagreira entrou. A platéia estremeceu. Muita gente doente havia ido até lá com a esperança de ser curado. Bel foi levada até a frente do palco. Nesse instante todos os pastores e obreiros estavam ali presentes.
O clima dentro da tenda começou a ficar abafado. Bel estendeu os braços em direção aos fiéis e começou a falar simultaneamente o nome de pessoas e a doença que tinham. Marco estava do lado para traduzir, mas começou a passar mal, sentiu o mesmo que quando teve aquela visão de Bel e o Lúcifer no quarto. Sentiu um enjôo muito forte e se retirou indo para fora da tenda tomar ar fresco.
Bel não parava de falar nomes e doenças. Enquanto isso na platéia um surdo começava a ouvir, um cego a ver; os fiéis gritavam a cada palavra que Bel dizia.
O calor se tornava cada vez mais forte ali dentro. Bem ao fundo, a entrada da tenda havia sido fechada para conter a multidão. Uma mãe tentava desesperadamente entrar com seu filho de sete anos na cadeira de rodas. Comovido, um segurança arrisca abrir caminho para eles. A mulher coloca o patuá no pescoço do menino e consegue entrar, mas o espaço não é suficiente para a cadeira de rodas. Alguém empurra a mulher, já dentro da tenda, e ela se separa do filho.
De repente inicia-se um incêndio, toda armação de plástico cai em chamas sobre a multidão que se encontrava ali. O calor era tão intenso que ninguém conseguia se aproximar, todos corriam para longe. Um homem pegou o menino no colo e correu também.
Depois de dez minutos chegou o corpo de bombeiros, já era tarde. Durante semanas essa catástrofe foi notícia no mundo.
O menino no colo do homem dizia sentir as pernas, estava curado, conseguia dar seus primeiros passos. Um grupo de religiosos contatou esse menino, uma das poucas vítimas que sobrevivera à tragédia e ainda afirmava ter sido curado pela milagreira, embora tivesse perdido a mãe no show de milagres.
Disseram a ele para tirar o patuá e entregar a eles, pois estavam em oração e se ele tivesse que voltar a não andar mais, que isso caísse em um dos religiosos.
A família do menino aceitou, assim tiraram o patuá e o abriram. Dentro havia o famoso papelzinho com a escritura:
“SATAN, EU TROCO MINHA ALMA PELA SAÚDE AQUI NA TERRA

Almerides Magalhães

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