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sábado, 17 de abril de 2010

As duas faces da maçã




Malus
Uma virgem pode convencer toda uma cultura.
Uma rainha por puro incesto pode reinar ante uma civilização
Virgem Maria ou Rainha Cleópatra?
Mulher – uma deusa da sabedoria ou da guerra?


Teria Eva realmente traído Deus e Adão? Teria Capitu realmente traído Bentinho? A Bíblia Sagrada foi escrita por homens, não no sentido uniforme de ser humano, mas literalmente no gênero masculino. E Dom Casmurro, oras, tem como autor Machado de Assis, outro homem...
Tudo bem, não quero me apoiar no senso comum. Sei muito bem a diferença entre escritor e narrador. Mas, senhor leitor, a mulher, antes mesmo dos tempos mitológicos, já era descrita como cobra, o mesmo animal peçonhento que convenceu o homem a comer o fruto proibido devido à sua língua ardilosa. Se houvesse história para o nascimento do touro, diriam que foi a vaca que traiu o boi. É uma vaca mesmo, até chifres lhe pôs!
O homem é santo; a mulher é bruxa. O cristianismo é a salvação; o paganismo, a maldição. Pois bem, gostaria que se atentasse a uma história que aconteceu há um tempo. Talvez a mulher não seja tão vil assim...

Atena, este era o nome da mulher de olhos verdejantes, cabelos castanhos e inspiração grega. Numa noite costumeira, Atena fazia um trajeto perigoso para retornar para casa, mediada numa metrópole enfurecida e de tempos nefastos.
Atena estava numa fase difícil de sua vida: seu relacionamento amoroso não ia bem. Alexandre, seu noivo, passava por crises no trabalho. Ultimamente, ele agira de modo frio. Por isso, hoje ela se arrumara especialmente para ele.
A rua pela qual passava no momento permanecia como sempre: amena, misteriosa e, talvez, inquietante. A noite se encontrava obscura da luz, mas arquitetava visivelmente com as trevas. As brumas inexplicáveis transpareciam dentro de uma neblina espessa.
Seu noivo a advertia, fazendo-a prometer que não passaria por ali. Entretanto, Atena não tinha opção, pois por aquela passagem chegaria mais rapidamente a casa. Chegando, porém, não descansaria, mesmo depois de um dia extremamente exaustivo de trabalho; emanaria energia positiva ao seu amor, dando-lhe afeto e serenidade.
De repente, ela ficou trêmula – algo incomum estava acontecendo.
- Quem está aí? – ela soltou ao ar.
Sem resposta, e sentindo baforadas perto de sua nuca, começou a correr, suas botas de couro sintético provocando dores em seus delicados pés.
Sem demora, Atena ouviu vozes muito altas; possuíam timbres ásperos e exasperados. Tais pessoas trajavam vestimentas escuras que expunham medo e sofrimento, com máscaras acobertando suas faces misteriosas, um pentagrama desenhado na fronte de cada uma delas. Envolvidos pela treva rasteira, pareciam sombras acobertadas pela escuridão inebriante.
Os bandidos não demoraram a alcançá-la. Atena sentiu uma veia de sua têmpora pulsar desesperadamente. Os homens ofuscaram de uma vez toda a felicidade daquela mulher batalhadora. Seus olhos foram persuadidos a se fechar. Seu corpo foi tocado arduamente.
Agindo por instinto, Atena reagiu de maneira brutal. Ao agitar-se, sem controle, porém, foi beijada. Seus lábios estavam frios e impossibilitados de se esquivar. Nessas circunstâncias, mordeu com firmeza a boca do agressor. O homem virou-se e, num ato repentino, lançou seu braço em um soco diagonal, sua luva negra enchendo-se de plasma sanguíneo.
Ferida, Atena vociferou com todas as forças que pôde. Após o grito, um dos bandidos, o que parecia vigiar os arredores, manifestou-se. Ele correu e empurrou seu companheiro, tirando-o de cima dela. Então, ele começou a tocá-la. Os pêlos de Atena se arrepiaram à medida que o bandido debruçava suas mãos por todo o seu corpo trêmulo.
A esta altura, Atena parecia estar confusa. Teria sido uma tola por não ter seguido o conselho de Alexandre, seu noivo?
Há cerca de meio ano, os dois haviam combinado que deveriam ter um filho, para que animasse a casa, providenciando o tão esperado casamento. Contudo, a situação talvez não permitisse.
Inesperadamente, seus olhos cruzaram com os do bandido. Uma fixação deixou o clima enigmático.
- Eu falei para você não passar por aqui... – a voz do bandido soou em tom cálido.
- Alexandre?!!! – ela murmurou, tossindo e gaguejando quase que em uníssono.
Então era por isso que ele a mandara não passar por ali? Aquele homem, banhado pelo ar de insanidade, era seu amor...
Ela novamente tentou reagir; desferiu vários cortes com suas unhas manicuradas em Alexandre.
- Eu a amo tanto... – confessou ele, abaixando a voz. – Mas agora não posso parar, senão eles me matarão também...
Ele levantou um pouco sua máscara, deixando que o símbolo modelado do pentagrama apontasse para o céu noturno. Logo depois, começou a amá-la da mesma forma que fizera na noite de núpcias, no dia mais feliz e importante da vida de Atena. Aqueles carinhos, embora utilizados com uma certa violência, a comoveram por alguns instantes. Ela se arrumara com muito afinco para agradá-lo, para consagrarem o desejo de ter um filho. Só não imaginava que seria assim... sendo estuprada pelo próprio noivo e assaltada por bandidos.
Os salteadores, no entanto, se cansaram daquela desordem cujo propósito era somente de roubo. Sendo impiedosos e cruéis, os homens matavam qualquer um que saqueavam.
Ao mesmo tempo em que Alexandre puxava com violência o coque dos cabelos castanhos de Atena, arrancando-lhe alguns fios sedosos, outro bandido sacou uma pistola do seu casaco. Os saqueadores ordenaram que Alexandre a deixasse só. Inexplicavelmente, ele não queria se separar daquele corpo amado. Sentia-se de alguma forma atraído, com um sentimento que o envolvia por inteiro. Sem delongas, chutaram-no entre as costelas, de modo que rolasse pela rua.
Atena sabia que seria seu fim. Fechou novamente seus olhos, recapitulando, em relances por sua mente, as vezes em que tentara ter seu futuro filho, que seria doce e amável.
O silenciador não deixou que a arma produzisse um som estridente, mas o cheiro de pólvora se mesclou com aquele clima fúnebre. Seu olfato ainda funcionava... podia cheirar...
Atena abriu com ímpeto os olhos... Alexandre estava em cima dela, tremendo sem parar. Ele havia se sacrificado por ela... mas por quê?
O sangue jorrava do corpo de Alexandre. Ele estava de bruços sobre sua mulher, e o sangue que saiu pela sua boca mergulhou pelos lábios de Atena.
- E-eu errei... – sussurrou Alexandre. – M-mas... e-eu... te amo... M-me perdoe...
O luar da noite parecia banhar-se com a poça de sangue com a qual o corpo de Alexandre jazia. O horror de vê-lo tremer nos últimos instantes de sua vida se cravou no breu. Então, sentindo o cano do revólver pressionado contra sua testa, aceitou o abraço, o derradeiro aperto, de seu homem.
- Eu o perdôo... – declarou Atena, enquanto suas decorrentes lágrimas a acompanhavam para seu desconhecido caminho.

E agora, caro leitor? O que acha da alma feminina? Ainda considera a mulher como uma costela retirada do homem, um câncer extraído do ser humano que, ainda assim, o atormentaria e o mataria em nome de uma peste invisível chamada amor?
Talvez eu tenha me excedido. A história, na verdade, também possui uma outra versão. Vamos, então, ao outro final...

- E-eu errei... – sussurrou Alexandre. – M-mas... e-eu... te amo... M-me perdoe...
Atena olhou para o homem, envolto por sangue, jazido sobre o solo de pragas. De abrupto, ela mostrou uma de suas mãos; um revólver surgiu, um de seus dedos entrelaçado no gatillo, o cheiro de pólvora emanando ao redor.
- Fui eu que atirei, e você nem percebeu…
Alexandre ficou boquiaberto. Atena se levantou imponentemente.
- Você achou que me enganaria? Não me diga que achou o design da máscara que você usa de mais. “Simboliza o mal, o satã”, você debe ter pensado. Ah, não me faça rir. Esse símbolo originalmente faz juz à deusa romava Venus, ou seja, uma mulher… Fui eu que deixei você entrar no bando. Acompanhei seus passos sujos, me enganando, mentindo para mim todos os dias. Mas sabe do que mais, eu planejei todo esse circo. Fui a artista que ensaiou o espetáculo da sua morte. E sabe por quê? Porque você é um estéril de merda! Achou que eu não descobriria?
Com muito esforço, Alexandre arrancou sua máscara, a imagem do pentagrama lhe
caindo como uma maldição.
- A mãe-natureza deve estar puta com você. Até mais.
E Atena terminou o serviço, um sorriso débil e delicioso esboçando-se em seus lábios carnudos, como se tivesse uma grande conquista na era helenística.

Como pôde perceber, seleto leitor, embora o palco seja o mesmo, parta de uma mesma situação inicial, o clímax e o desfecho mudaram de enredo. Mas, é claro, o mais importante sou eu, o narrador! Ora personagem, ora onisciente. Que coisa, não? O foco narrativo deste conto é meu, e ponto final.
Portanto, faço-lhe um desafio. O ponto-chave desta trama reside na seguinte pregunta: o narrador-personagem é masculino ou femenino? Se está acontecendo em primeira pessoa, eu estou sendo, de certa maneira, parcial. Mesmo assim, se a primeira impressão que passei foi a de que apenas defenderia o sexo frágil, parece que muito o enganei. Dizem que a mulher é muito mais competitiva que o homem… sendo assim, eu estaria criticando a feminilidade por puro capricho meu ou, por outro lado, minha voz masculina é que, na realidade, despontou nesta história?
Tente adivinhar. Sou homem ou mulher? E aí, escolherá quem, a Medusa ou Perseu? O espectro ou a Cartomante? As mulheres são ninfas, sereias ou harpias? A resposta transpira nas linhas que já leu, mas a reflexão se delineia a partir do emaranhado de linhas que se costurarão em sua mente.
Ah, pentagrama, ajude nosso Templário Leitor! Cinco retas, cinco pontas, cinco elementos, mas uma só Grande Mãe…

Philip

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Melão ou botijão?


Estávamos em horário de almoço quando decidimos comer em um self service que fica no final da rua onde trabalhamos. Não lembro sobre o que conversávamos no caminho, mas o interessante foi quando um homem, desses que carregam um carrinho de madeira vendendo coisas, veio em nossa direção. Não lembro o que ele vendia, acho que eram limões, mas isso não importa muito; o que importa é a frase confusa que ele direcionou a uma de nós duas, não sei se foi para mim ou para ela ou para as duas. Foi literalmente isso: eita, colega, tá cheio que chega ta derramano, hen!
Alguém entendeu? Eu não.
Na opinião da minha amiga, ele estava dizendo que uma de nós estava gorda ou as duas. Fizemos uma tentativa de compreensão daquele dialeto, então chegamos à conclusão de que ele referia-se aos nossos pneuzinhos, que estavam tão cheios que derramavam por cima da calça, você concorda? Na opinião de um amigo meu, ele poderia estar se referindo aos seios. Confesso que isso me aliviou um pouco, mas infelizmente continuaremos sem saber, porque eu não tive coragem de pedir para o vendedor traduzir a frase para a norma culta ou coloquial. Penso que compreenderia as duas, porém o que ele usou é um tipo de dialeto que não faz parte da minha tribo.
Ele poderia estar nos fazendo um elogio, não sabemos, mas o motivo que nos levou a pensar instantaneamente na questão do peso está, com certeza, relacionado ao padrão de beleza imposto pela sociedade. Sim, porque somos praticamente obrigados a segui-lo se quisermos nos enquadrar nesse padrão que dita as regras da beleza, isto tanto para homens quanto para mulheres.
Acredito que, para as mulheres o peso é maior, não o do corpo, o das regras. Para sermos belas temos de ser magras, peitos e bundas quanto maiores melhores, corpo bronzeado; os cabelos atualmente mais belos são os lisos. Mas me parece que isso está começando a mudar, pois a mídia é uma das principais ditadoras dessas regras. Hoje temos uma atriz negra com os cabelos selvagens como protagonista da novela da Globo; isso pode virar moda. Infelizmente, com essa ditadura seremos eternas crianças brincando de o mestre mandou.

Carla Lucatto

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Transitoriedade Perene



Uma mulher linda e jovem vinha contornando a lago do Ibirapuera, pensando sobre o ciclo da vida: “Embora tenhamos a sorte de nascermos, vivemos, mas tudo que nasce tem o seu fim, morre... tudo está em constante movimento.”

Aquela tarde, naquele arrebol, a linda moça chegava a sentir, em sua pele suada, o fresco ciclo do vento que balançava as flores e lhe fazia pensar no banho morno, este lavaria mais um dia de cansaço e logo que saísse buscaria o fresco lençol e no seu leito repousaria consigo as lembranças de um dia fatigante.

No estacionamento do parque, como de costume, Stefany sempre doava uma moeda para um mendigo que há tempos morava ali, nas proximidades do parque. A moeda que ela entregara aquele homem, não era compaixão, era amor pela crença na teoria de que tudo que é nosso sempre acaba voltando para nós. A moeda é um objeto que não para de circular pelas mãos das pessoas efêmeras.

Aquele homem sorriu para ela e disse:
- Nada está parado, um dia vou sair daqui, que Deus dê a você a proteção que merece e retribua a benevolência.
Amargurada pelas palavras sábias do humilde homem fingiu não tê-lo escutado e saiu pensativa, rumo ao seu Audi 2009.

Dirigia devagar numa velocidade que ajudava a sonolência, não precisava prestar muita atenção, o pouco movimento da avenida permitia divagações. Entrou na Avenida Brigadeiro, passou por um bar cheio de homens “metafísicos”, horríveis, que fixaram os olhares não para o Audi e sim para Stefany, que possuía uma beleza angelical, um olhar esnobe, meigo e traiçoeiro de um brilho a enlear, claro que atrairia a atenção de qualquer homem.

Entre aqueles homens, estava o mais maduro deles, o mais sábio, aquele homem cujo nome era conhecido por todos como Vladimir, dono de uma exuberante Harley Davidson. Ele era um lobo na pele de carneiro, dono de uma beleza invejável que atrairia e trairia o olhar de qualquer mulher.

Enquanto os “metafísicos” planejavam assaltá-la, Vladimir estava “anos luz” à frente, pois, ele já marcara cada passo de Stefany, sabia para onde ia, de onde vinha, do que gostava de fazer após os passeios no parque do Ibirapuera; sondara todo ciclo histórico de sua família até a extremidade de sua árvore genealógica.

Naquele instante Vladimir percebia que era o grande dia, talvez o único momento para surpreendê-la de tal forma que mesma a antipatia da moça não conseguiria afastá-lo.

Vladimir montou em sua Harley e acompanhou de longe a perseguição.

Aqueles três homens medonhos do bar estavam atrás de Stefany, muito próximos, mas ela não percebera nada, estava na sua rua próximo do seu magnífico edifício, não tinha nenhuma alma viva naquele instante sombrio. Antes mesmo que ela guardasse o carro aqueles a surpreendeu; estagnada ficou sem nenhum movimento de reação, somente a palidez do olhar abalado dizia da sua raiva, de sua revolta, do seu ódio contra aqueles nojentos asquerosos. Um daqueles homens se aproximou do carro, fedia suor, cerveja e maconha, apontou o revólver para Stefany, gritando com sua voz ruidosa:
- Saia do carro!
Stefany saiu trêmula e os outros dois a pegaram fortemente pelo braço e sussurraram ao pé do ouvido:
- Você é a gostosa da vez, dá seu cartão e sua senha, sabemos que está na sua bolsa, dá para nós agora mesmo.

Assustada entregou tudo para os bandidos, mas o que eles não esperavam, quase todos, é que Vladimir acionara a polícia. Ele já estava no local a espera de um descuido dos ladrões, e foi assim que aconteceu. O homem que estava com a arma foi surpreendido com um golpe de Vladimir, que em seguida pegou a arma do bandido, enquanto estava desacordado, atirou para cima e os outros dois fugiram sem hesitar. A polícia chegou ao local e prendeu Vladimir, equivocadamente, Stefany se desprendeu do seu transe e gritou:
- Esse homem não tem culpa, ele me salvou das garras desses loucos, se não fosse ele, certamente, vocês não me encontrariam viva!

Atordoados com tal discurso, os policiais pediram desculpas para o herói e em seguida, prenderam o ladrão desacordado e disseram para os dois que não precisaria de testemunhas, porque era assalto à mão armada; o colocaram no camburão e foram para o seu destino.

Anteriormente aquele mesmo indivíduo havia sido preso, mas como não tinha prova suficiente para prendê-lo. Era um ciclo vicioso, prendia e soltava, mas agora os policiais estavam felizes porque aquela arma era prova suficiente para prendê-lo de uma vez por todas.

Vladimir ficou com os olhos fixos em Stefany como se quisesse dizer algo, esta se aproximou dele e deu-lhe um beijo nas proximidades da boca, como forma de agradecimento. Vladimir por sua vez abaixou rapidamente e pegou a bolsa da moça sem tirar os olhos dela e disse:
- Stefany, certo?
- Como sabe?
- Há muito tempo venho te sondando, por exemplo, dias atrás você recebeu um buque de orquídea, não foi?
- Sim.
- Ontem, você recebeu um envelope com uma carta anônima, cujas palavras descreviam um amor platônico de um admirador que faria tudo para conseguir sua admiração e como prova desse amor junto à carta continha um brasão com a árvore genealógica de sua família. Digo-lhe que somente aquele que ama busca saber e valorizar a essência da pessoa amada, não valoriza o que ela tem e sim o que ela é. Você recebeu? Abriu? Eram essas palavras? Percebo que gostou do brasão, vejo que está pendurada em sua bolsa.

Stefany admirada e contagiada por tamanha gentileza ficou a enamorá-lo com os olhos e após um minuto de silêncio sorrindo disse-lhe: - Além de ser meu herói e meu admirador? É o homem que pedi, sonhei e esperei.

Caro leitor não foi tão romântico, foi eficaz o jeito como ele a conquistou.

Passados três anos, Stefany estava grávida de nove meses. Vladimir já era presidente da empresa dela, tudo estava de acordo com seu plano sórdido; sem que ela soubesse 70% das ações da empresa já eram dele.

Stefany em uma tarde de domingo estava passeando no parque como de costume, foi ao estacionamento, mas dessa vez não encontrou o pobre homem que a havia feito pensar sobre sua hipocrisia, naquele instante lembrava que, quando criança menosprezava as pessoas e torcia que suas rivais padecessem nas mãos de homens horrendos; lembrou-se que tudo que ela desejara aconteceu consigo mesma, exceto a traição. Esse pensamento a perturbou, no entanto, Vladimir sempre foi um bom marido, companheiro, amigo, sempre a ajudou em todos os setores de sua vida. Ela nunca viu se quer um indício ou suspeita de traição. Ele era um herói, de fato, um supremo herói.

Certo dia, Vladimir atendeu um telefonema suspeito em seu escritório. O homem dizia assim: - Vladimir, já se passou três anos e você não me pagou, fiquei preso por dois anos e meio e até agora não deu nenhum parecer, quero acreditar que você não entrou em contato comigo, porque aqueles dois pilantras morreram e levaram com eles a sua memória. Mas, agora estou aqui reivindicando os meus direitos e espero ser atendido...
Vladimir ficou algum minuto inerte, pensativo...

O telefone tocou novamente, ainda apreensivo, resolveu atendê-lo. Era a enfermeira da maternidade que naquele derradeiro momento dava uma grande notícia: seu filho nasceu e sua mulher está bem, nós precisamos do senhor aqui, o convênio dela está pendente.
- Claro, vou correndo, chego aí em quinze minutos.
Ao chegar ao hospital perguntou de sua esposa e de seu filho, pagou o hospital e regularizou o convênio.
Estava subindo para o quarto da mulher quando um homem asqueroso o barrou interrogando-o: Lembra-se de mim?

Espantado, Vladimir disse:__ Lembro, Joel!!
__ Vejo que você está muito bem Vladimir, cadê o meu dinheiro? Seu salafrário. Sabe, acabei de visitar a Stefany é sua esposa, certo? Vladimir apreensivo disse:
__Joel, te pagarei, deixe minha família em paz...
Com o sangue nos olhos Joel o repreendeu: Família, seu idiota, nós éramos parceiros e você me traiu com essa vadia, passei anos preso para agora escutar isso, basta! Quero quinhentos mil reais e você terá menos de vinte e quatro horas para o pagamento da dívida, caso contrário... Já não preciso explicitar “certo, mano?” Joel encarou Vladimir e continuou a descer as escadas ao tom furioso dos passos.
Vladimir concordou passivamente e ficou por algum segundo pensativo, queria fugir de seus questionamentos; o local onde discutia com Joel era próximo do quarto de Stefany e esta escutara toda a conversa; Naquele efêmero instante o chão desabava.
Vladimir ao entrar no quarto foi expulso aos gritos estridentes de Stefany. Ele não teve chance de explicar, somente o seu olhar foi capaz de dizer a ela o quanto estava arrependido e o quanto a amava. Amargurado, saiu do quarto e desceu as escadas rapidamente, na porta do hospital, do lado de fora, havia um homem parado próximo de um Vectra que foi ao encontro de Vladimir perguntando:
__ Você aparenta ser o esposo de Stefany, você é?
Desconfiado, Vladimir respondeu pausadamente:
__ Sim, sou... Por quê?
__ Que bom, eu a socorri no parque, ela estava no chão do estacionamento, caída reclamando das dores, dizia que estava fraca e ia dar a luz. Fiquei preocupado, ela estava pálida e acabou adormecendo no carro. Consegui trazê-la a tempo para esse hospital, falei com a enfermeira e pedi para que ligasse para o senhor, peço desculpas por ter mexido nas coisas dela.
Vladimir o respondeu comovido:
__ Obrigado Senhor! A minha esposa está bem, de quanto o senhor precisa?
O Senhor do Vectra sorriu e o respondeu:
__ Não preciso de nada só a graça de Deus me basta, mas gostaria que o Senhor avisasse a sua esposa de que o homem que ela ajudou deu a volta por cima.
O homem entrou no seu Vectra e recomendou-lhe:
__ Vladimir, a vida é cheia de altos e baixos, não desista do amor, nunca desista de amar, você nunca sabe quando será chamado, talvez agora, alguns minutos, horas, quem sabe? Nunca é tarde para recomeçar.
Aquele homem misterioso deixou marcas em Vladimir , assim como havia deixado marcas em Stefany, ligou o carro e foi embora.
Vladimir entrou no seu carro e foi à igreja, no quarteirão próximo havia uma multidão na rua; Era um atropelamento, a polícia estava lá junto do corpo caído, para a surpresa de Vladimir era o seu amigo traído que estava ali, morto. Vladimir parou o carro e foi ao encontro de Joel. O celular de Vladimir tocou. Ao atendê-lo, tomou um choque, paralisado em profundo êxtase, seus olhos enchiam d’água como se estivesse perdendo a própria vida, pois acabava de receber a trágica notícia, de que sua mulher havida falecido no leito do hospital de hemorragia interna.
Ao tentar sair da cama às pressas Stefany caiu, não chamou ninguém, havia um bilhete: “Cuide de nossa filha, assim como fez comigo. Eu te perdoo”.
Passados alguns anos... Eliza e seu pai costumavam passear no parque e sempre que iam lá contornavam o lago do Ibirapuera. Eliza sempre estava com o medalhão onde quer que fosse. O medalhão trazia à memória de Vladimir o amor inefável de Stefany.


OBS: Elisa, Eliza: Variação de Elisabete. A franqueza é a marca registrada da pessoa que tem esse nome. Mesmo que às vezes lhe traga alguns problemas, sua tendência a dizer sempre o que pensa revela uma grande qualidade: o apego à verdade. Na maturidade, torna-se mais diplomática, mas continua sentindo aversão pela mentira.

Jonny William

Desabafos femininos



Mulher e drama são coisas que se atraem. Calma, amigo (a) leitor(a)! Não emito essa opinião de uma posição machista e/ou desavisada. Acumulo estórias dignas de filme de comédia ou de desenhos animados em que a bigorna sempre cai na minha cabeça, porém, percebi que esse “privilégio” não é só meu.

Ao contar meus “causos” no maior estilo Forrest Gump para algumas amigas pude constatar que o drama feminino ressoa vindo de outras representantes do sexo frágil. (frágil? Que consenso mais tolo...SEXO FORTE!)

Calça branca e menstruação adiantada, vestido ou meia calça que rasgam no caminho da balada, sapato emprestado que estoura por conta pés que incham. Isso para não falar da tempestade que cai sobre a progressiva, chefe de mau humor no dia do seu aniversário ou liquidação dos sonhos no dia em que você não tem vintém,meu bem!

Amores e desejos impossíveis, situações de vexames desprezíveis e pessoas importantes incompreensíveis são somente variações de um mesmo tema.

Mas, é preciso dizer que muitos dos nossos dramas são atraídos por nós mesmas. Engordar, pagar multa ou permanecer em relacionamentos fadados ao fracasso são coisas possíveis de se evitar.

Porém, aniquilar contratempos implicaria equilíbrio (algo não muito comum para a maioria das mulheres) e pouparia a humanidade de casos absurdamente tragicômicos e dos quais todas (nós, mulheres) temos apreendido tantas lições.

Veja só um exemplo! Imagine-se num encontro com aquele “bofe” dos sonhos de qualquer garota, lindo, inteligente, gentil ( e muito hétero,pasmem!) duas horas de papo delicioso (e duas garrafas de vinho) depois...

Roupas que se espalham por um charmoso apê de decoração inacabada, uma cama de solteiro (porque é exótico!) e você acreditando que vai rolar o melhor “sexo africano louco selvagem” (li outro dia e adorei!) quando de repente....aquele grito bizarro bem no meio da madrugada.

Ai, meu Deus! Será que a Dirce (assim que a chamo carinhosamente) tornou-se uma planta carnívora e devorou o bilau? Ou pela falta de uso desenvolveu algum líquido ácido que está dissolvendo-o? Ou ainda, estou tão fantasticamente apertada (e otimista) que ele teve orgasmos múltiplos?

Não! Esse grito não é prazer, é de dor! Muita dor! E aí me lembro do problema grave que ele tem no joelho caso sofra qualquer tipo de esforço ou porrada (mesmo a mais leve), nem preciso dizer que ele bateu o joelho na parede e sofreu dores intermináveis, e nossa noite foi para lá do Piauí. (como diz meu pai nesse dialeto incrível, aqui significa que nada rolou)

Portanto, leitor, perdoe-me, mas vou me dirigir a uma leitora em especial. Você! É você, mulher linda e poderosa, caso você gaste toda a sua grana na balada da moda (só com a entrada e sem open bar), tenha uma noite ou viagem frustrada ou se apaixone pelo livro, vestido, sapato ou homem errado (fora do orçamento ou simplesmente inatingível como o Brad Pitt,por exemplo) não se desespere! Você terá muito do que rir com as histórias que vai contar...

Thaís Renata de Lima

Revelações



Eram 10 e meia da manhã, a areia da praia reluzia sob o sol tão forte e brilhante que disparava raios ao invadir a cristalina água do mar. Podia-se sentir a brisa em seus cabelos e o suave, porém, marcante perfume da maresia. O cenário era lindo, Áurea pensava, mas o atraso incomum do seu namorado a perturbava, Henrique era um rapaz moreno, alto, de personalidade forte, seriedade e extrema pontualidade.
Áurea buscava na memória os detalhes do primeiro beijo, que acontecera no final de uma festa da empresa em que ela trabalhava. Fora em um salão escuro com flashs coloridos, diversos perfumes e muito barulho de vozes e música alta.
Apesar de muito articulada e comunicativa, Áurea era tímida, bonita, loura de cachos longos que iam até a cintura de seu corpo esguio e sinuoso, não era alta, possuía estatura mediana e por esse motivo abusava dos saltos altos.
Preferia vestir-se discreta e elegantemente, pois era uma moça que facilmente chamava a atenção, não somente por sua beleza, mas também por sua atitude dinâmica, simpática e amistosa.
E no meio daquela barulhenta pista de dança seus olhos se encontraram e fixaram por instantes. Ela possuía olfato apurado e visão medíocre, sentia o amadeirado do perfume de Henrique, o hálito fresco de menta e seus cabelos, que deviam brilhar muito, já que ela mesma conseguia perceber o quão bonitos, macios e brilhantes eram; ela queria tocá-los.
A iniciativa fora dele; ela relutou, afinal os seus colegas de trabalho estavam presentes e ela não conseguia vislumbrar como homem tão bonito, tão sério e interessante poderia se interessar por alguém tão normal e sorridente como ela.
Ela detestava isso, era tão simpática que muitos não acreditavam que era uma boa moça. E ele se encantara por ela, só que ali? Justo ali? Próximo ao chefe dela e de seus colegas maledicentes?
Ela protelou o quanto pôde, mas na última canção não pôde resistir: beijou-o avidamente, pela primeira vez, mas como se fosse a última, tudo girava e de repente o mundo era somente ela e ele.
Sentou naquela areia quente e pensou em banhar-se, mas seu vestido era branco, de algodão e ela ficaria nua aos olhos de qualquer um, caso se molhasse.
Resolveu esperar mais um pouco olhando para o horizonte e pensando em como estava incomodada com atraso tão estranhamente perturbador de Henrique.
Estava distraída quando sentiu uma mão fria e forte em seu ombro, olhou-o contra a luz e pelo cheiro percebeu que não era Henrique que estava ali, e sim Thales, seu amigo querido de espontaneidade genuína, sorriso largo e franco, aroma cítrico e refrescante, tinha a sua pele branca como a vela.
Sua face não estava como de costume, seus olhos infinitamente azuis escondiam alguma coisa.
- No que está pensando, Áurea?- Proferia Thales.
- Em muitas coisas, querido. Coisas que me lembram de dias inesquecivelmente únicos.
E de um aperto no coração que não afrouxa desde o comecinho da manhã.
- Aconteceu alguma coisa?
- Me diga você! Percebo que está tenso e, apesar de querer me contar algo, está me escondendo coisa muito importante.
- Eu hein, Áurea! Agora você é vidente? Hunf.
- Calma bobo! Só percebo uma nuvenzinha cinza aí em cima da sua cabeça.
- Não é nada demais. Só queria te fazer uma pergunta.
- Faça.
- O quanto você é apaixonada por Henrique?
- Não sei se é possível mensurar. Só sei dizer que o amo tão desesperadamente que a mínima possibilidade de perdê-lo por qualquer razão que seja me aflige, me rasga o coração. Não posso sequer imaginar tal coisa. - Após uma breve pausa ela pergunta – Por quê?
- Porque é importante. Você é muito importante pra mim e tudo o que você sente também é.
Ela percebeu que era verdade o que ele dizia, mas em seus olhos tinham dor, então ela o abraçou e disse: o que você tem, querido amigo? Está carente? - riu. Dou-te o colo que precisar.
Áurea – disse ele sério – O que preciso dizer-lhe é que sei o quanto Henrique te ama.
- Como sabe?
- Porque sinto o mesmo – disse ele.
Ela calou-se, e ele continuou.
-Te amo em silêncio por mais de dois anos, e preciso dizer que sempre estarei aqui, você tem opções, não está sozinha, nunca vou te deixar.
- Thales, mas você se tornou amigo de Henrique, não é?
- Sim, é verdade. E é por isso que me dói tanto, por isso esperei tanto... Esperei tanto que achei que nunca fosse contar... Mas...
- Mas, o quê? - E o medo tomou conta de todos os pensamentos de Áurea, um arrepio frio subiu-lhe a espinha e ficou trêmula da cabeça aos pés.
- Você precisa se acalmar – disse Thales.
- Não quero me acalmar coisa alguma. Conte-me a verdade.
- Vim a seu encontro para..., é tão difícil.
- Diga-me sem rodeios, Thales.
- O Henrique, é sobre o Henrique que vim falar.
- O que houve? Diga-me! Eu imploro.
- Calma Áurea. Se você não se aquietar, não será possível dizer.
- Pois bem, - respirou ela. -Conte-me o que está acontecendo – falou baixinho.
- O Henrique, ele... Sofreu um acidente vindo para cá, ele estava correndo na pista e uma curva traiçoeira fez o carro capotar.
Aquelas palavras amargas bateram forte na cabeça de Áurea e tudo começou a escurecer diante dela.
- Áurea, me escute. Estou aqui! Áurea!!!
- Sim, Thales. Estou ouvindo. Onde ele está? Machucou-se muito? O que mais tem para me dizer?
- Agora que comecei, vou te contar tudo.
Pegou as mãos dela e colocou entre as suas, e disse-lhe que o carro capotou e pegou fogo.
- Foi um acidente muito grave, mas ele foi resgatado rapidamente e está a caminho de um ótimo hospital no Rio, aqui na Região dos Lagos não tem hospital equipado o bastante para cuidar dele. Vim buscá-la, porque sei que você dispararia com o carro por essa cidade. E eu não poderia permitir isso. Vamos!
Áurea não resistiu, assentiu com a cabeça e foi levada ao carro de Thales.
O silêncio era cortante, gelado e devastador.
Ele não sabia o que fazer, sabia que o estado de saúde de Henrique era muito grave e que Áurea não estava bem.
Ela parecia ter sido abduzida para outra galáxia, nem percebera quando Thales estacionou e abriu a porta do carro.
-Vamos querida! Ela não reagia e ele a envolveu nos braços e subiu as escadas com ela no colo. Na recepção recebeu a informação de que Henrique estava na UTI.
Áurea não ouvira e murmurou: E agora, Thales? O que vou fazer? Não conseguirei...
- Me escute – disse ele. - Vou ficar sempre ao seu lado, ele está inconsciente e ficaremos aqui o tempo que for preciso.
- Eu quero vê-lo, Thales. Sinto como se o meu tempo com ele fosse escasso como a velocidade da areia na ampulheta, me leve até ele! Me leve!
- Acalme-se. Isso não é possível agora.
- Como não?
- Ele está na UTI, você terá que esperar. - E apertou forte a mão da moça que tanto amava.
Ela se perguntava por que seu querido amigo a amava, e se amava porque estava ali, sabendo que ela sofria tanto por outro.

Lembrou de como conhecera Thales, um ano depois de se apaixonar por Henrique e em um momento delicado, pois, apesar de muito apaixonados, Henrique pedira um tempo para que ele pudesse fazer uma viagem de seis meses ao exterior.
Foi em um feriado prolongado, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, a primeira vez que se viram estavam entre amigos, mas Áurea não pôde deixar de perceber os olhos incrivelmente azuis de Thales, e percebia-se facilmente o quanto ele gostava de ficar em companhia daquela moça loira e sorridente, que tinha um senso de humor extravagante e de malícia inofensiva.
Estavam em uma casa alugada, simples, sem mobília e com colchonetes ao chão. Na cozinha, aquele cheirinho de naftalina típico das casas de veraneio e um aparato doméstico muito modesto para o cotidiano normal de uma família.
Sete pessoas ao todo, Áurea que fora em companhia de Maria e Carolina, e Gabriel, amigo de infância de Áurea, acompanhado de amigos que ela não conhecia: Marco, Alexandre e Thales.
Gabriel tinha intimidade para falar bobagens e implicar com a mania de saltos altos de Áurea, ele repetia que ela os colocava até mesmo para ir à praia, já Thales pouco falava porém se oferecia para ajudá-la nas tarefas da cozinha e ela aceitava pelo simples prazer de sua companhia.
Naquele momento tão adverso Áurea sentiu-se mal por pensar tão detalhadamente em como conhecera Thales, recordara também que sua colega Maria se interessara por ele e por não ser correspondida voltou à cidade falando coisas bem desagradáveis sobre Áurea.
-Thales - disse ela- Você é uma pessoa muito querida, muito especial para mim, me trouxe a alegria num momento em que tudo era dor, quando juntava meus cacos e colocava um sorriso no rosto para não perder o costume. Como diz isso agora? Como gosta de mim há dois anos? Como? Não entendo.
-Querida, acho que me apaixonei no instante em que a vi. Você é muito esquisita, sabia? Não consegue ver a doçura e a sinceridade do seu sorriso, das suas palavras. Não enxerga como é linda?
-Não - disse ela rispidamente- E nem adianta porque a minha visão não é tão ruim assim.
-Acho péssima- disse ele.
-O que?
-Sua visão. É impossível acreditar que não se ache linda, interessante, atraente...
-Chega Thales. Responda a minha pergunta.
-Está bem, está certo. Você me chamou atenção por ser linda, mas o fator decisivo que me conquistou definitivamente foi o seu sorriso fácil e sincero. Sua simpatia e inteligência encantaram a todos os meus amigos, não percebia como não desgrudava de você? Oferecia-me para ajudar na cozinha e não sei cozinhar.
-Isso era engraçado, mas achei que não estivesse com vontade de tomar sol com os meninos...afinal, você é tão branquinho...
- Imagina, se você fosse passar o dia todo na cachoeira como suas amigas eu iria atrás mesmo que me tornasse vermelho como um pimentão. E quando te chamava para dançar com toda essa timidez? Nossa, estava muito claro o quanto estava louco por você, só você não percebeu o quanto. O Gabriel ria de mim o tempo todo.
- Mas nós ficamos amigos tão rápido, não foi? disse ela.E você dançava tão bem.
- Sim, foi o jeito que encontrei para ficar perto de você, conversando, dançando. Percebi que estava triste quando me contou tudo sobre o que estava passando como a ausência do Henrique.
- Foram maus bocados, os piores seis meses da minha vida até hoje.
- Sinto muito – disse ele.
- Desculpe Thales. É que até hoje eu sabia o que era ficar sem Henrique porque ele tinha pedido um tempo, era uma escolha entende? Deixar-me esperando tanto tempo sabendo que ficaria fielmente a devotá-lo, ele sabia que no alto dos seus vinte anos muitas coisas poderiam acontecer tanto com ele quanto comigo.
Aquele sofrimento todo que você assistiu foi tudo culpa minha. Meu Deus... Tentar suicídio? Loucura total... Depois vi que Henrique estava feliz e isso me ajudou a viver.
- Peraí – você falou em suicídio?
- Uma bobagem. Antes de te conhecer.
- Não importa. Vou deixar uma coisa muito clara para você, Áurea. Nunca, nunca pense que qualquer homem desse mundo mereça tal sacrifício, entendeu?
- Sim, Mas,... mas agora é devastador pensar no perigo que a vida dele corre.
- Mas ele está recebendo o melhor tratamento.
- Eu sei... eu sei...
E a médica os interrompeu e disse que o caso era realmente muito sério e se Henrique tivesse sorte levaria semanas, meses até para se recuperar do acidente.
Áurea era pura dor e Thales parecia que sentia em dobro, pois não suportava vê-la daquela maneira.
- Vamos embora daqui – ele disse.
- Não posso, vou ficar.
- A médica disse não há o que fazer aqui, temos que esperar. Então, vamos para casa, tomaremos um bom banho, descansaremos e amanhã tudo será mais leve.
- Não... Mas, o Henrique, se ele acordar... tenho que estar aqui.
- Mas ele não acordará essa semana, Áurea.
Encare os fatos. Vamos fazer o que lhe disse e amanhã te trago com objetos pessoais para que possa acompanhá-lo de perto.
- Tudo bem, então vamos.
Ele a deixou em casa e ela pensou na sucessão de fatos daquele dia, colocou-se embaixo do chuveiro ainda vestida e percebeu o quanto seu vestido era transparente, chorou mais ainda por lembrar da dor que sofrera ao ouvir o relato do acidente, ao pensar na primeira dor da perda, do abandono de Henrique, da segunda dor quando ele falava por telefone que estava com uma moça estudante de medicina nos EUA e ela nem era a primeira, já havia na lista dele uma ex-namorada antes ainda da viagem como consolo por se sentir confuso e triste pela separação. Como ele pôde? Pensava ela. Em menos de três meses a vida de Henrique estava normal.
Normal, não, ótima. Trabalho e curso no exterior, namorada nova e uma idiota compreensiva e esperançosa “ex-namorada e amiga” no Brasil.
E agora essa possibilidade de morte, e de vida, pois Thales tinha a verdadeira feição da beleza e da vida. Nunca faltara com respeito, jamais falaria algo sobre seus sentimentos, se não estivesse mesmo querendo dar-lhe segurança. Será que ele sabia de mais coisa? - pensava Áurea.
E o acidente, coisa mais bruta, capotar e pegar fogo? Henrique sentira muita dor?
Como faria para viver sem seus beijos, seus braços e abraços? Sem seu sorriso, sua sobriedade que colocava um pouco de ordem em sua vida?
Chorou por mais de uma hora, sentia o sal de suas lágrimas e a água morna que caía do chuveiro. Estava a lavar-se por dentro e por fora.
Fechou o chuveiro, despiu-se, enrolou uma toalha no corpo e deitou na cama adormecendo profundamente de tanta exaustão.
Dormia e acordava, acordava e dormia, ia do hospital pra o trabalho, do trabalho pra casa e assim ficara por seis meses até Henrique sair da UTI. Thales não deixava de vê-la um dia sequer.
No dia em que Henrique acordou, ela pôde entrar e vê-lo bem de perto. Thales a esperava do lado de fora do quarto.
Henrique sussurrava seu nome e Áurea chorou de emoção ao perceber que ele estava consciente e por meses os progressos foram surgindo e a recuperação de Henrique continua em um lento, porém constante progresso.
A presença de Thales voltara ao normal, diária sim, porém com ares de amizade. Áurea percebia o sacrifício de Thales em fingir que não a desejava, mas agora ela já sabia e pairava uma dúvida em seu coração, pois se de um lado tinha Henrique tão lindo, tão forte, tão sério e independente e igualmente dependente naquele momento, do outro lado via Thales tão presente, tão forte não fisicamente mais sim por suportar com tanta coragem a situação em que Áurea se encontrava e aquilo certamente transformara seus sentimentos por ele em algo desconhecido.
Passado mais de seis meses Áurea e Henrique já conversavam com freqüência, a alta sairia em questão de dias.
- Áurea – falou Henrique.
- Sim, meu lindo.
- Você está cuidando de você? - Disse ele.
- Por que diz isso?
- Porque é importante.
- Ai meu Deus o que quer dizer com isso?
- Me diga, por favor.
- Estou trabalhando e. .. acompanhando a sua recuperação.
- Áurea você nunca mais saiu com seus amigos?
- Vejo o Thales quase todos dos dias, já te disse que foi ele que me avisou do acidente.
Mas por que isso agora?
-Porque já são mais de oito meses que estou nesse lugar e sua vida não pode parar por minha causa.
- Mas ela não parou, estou feliz por estar perto de você.
- Não é justo!
- O que não é justo, Henrique?
- Você cuidar só de mim e não pensar em você. Eu te amo Áurea, mas tenho que te deixar livre, fiz uma série de cirurgias e ainda farei muito tempo de fisioterapia.
- E eu estarei com você.
- Não posso.
- Como assim?
- Áurea, lembra do nome Mariana?
- Não estou entendendo.
- Lembra-se da moça que conheci nos EUA?
- Sim. O que tem ela?
- Eu não quis te decepcionar, mas... a Mariana é a médica que acompanha meu tratamento.
- O que está me dizendo? Você...
- Calma. Estamos mais próximos sim, mas percebi o brilho em seus olhos quando fala no Thales.
- Não me venha com essa. Amo o Thales porque ele é um grande amigo, leal e companheiro não temos nada mais que isso.
- Eu sei. Mas, acho que seria melhor para você ficar longe de mim, viver a sua vida e não passar dias e dias junto a um inválido.
- Não diga isso jamais, Henrique.
- E eu percebi o quanto tenho afinidade com Mariana, gosto muito da companhia dela.
- Mas não a ama, pare com isso!
- Pare Áurea. Estou decidido, amo Mariana e ficarei com ela é isso que nós queremos.
- Quando esse “nós” deixou de ser eu e você?
- Não sei ao certo... Mas eu não podia mais adiar essa conversa.
E Áurea saiu do quarto em disparada, chorando desesperadamente desceu as escadas e ouviu Thales chamar pelo seu nome, mas não parou, acelerou ainda mais o passo, correu tanto que o salto de seu sapato rachou e fez com que ela tropeçasse e caísse. Thales a alcançou.
- Querida, o que houve? Esqueceu que eu te esperava para um café?
- Não sei de mais nada. É uma loucura - falava ela – Como sou idiota!
- O que não sabe? Por que está chorando? Aconteceu alguma coisa com Henrique?
- Ele... ele rompeu comigo.
- O quê?
- Lembra da moça que ele conheceu nos EUA?
- Han? O que tem isso agora?
- É a médica que cuida dele.
- Que ingrato, cretino. Não posso permitir, não quero vê-la sofrer novamente.
E com aquelas palavras, no meio do sal das lágrimas, do cheiro refrescante de Thales, da dor no estômago e no peito por mais uma perda sofrida, seu pé que latejava pela torção, se jogou nos braços do amigo. Thales não pôde ficar imóvel, reagiu impulsivamente, seu sangue fervia e a beijou com uma ferocidade absurda, desejava tanto aquela mulher e os mais diversos pensamentos lhe passavam pela cabeça. O amor, a ternura por Áurea, a ira por Henrique fazê-la sofrer e o prazer de tê-la em seus braços, até que Áurea o interrompeu.
- Desculpe, desculpe. – disse ela.
- Desculpas? Pede desculpas? Porquê?
- Por ter desejado que me abraçasse como homem, não como amigo, eu que provoquei isso. Que oportunista, me perdoe.
- Não seja tola. Você realmente me... desejou?
- Sim. Desejei você e sua proteção, seu colo, seu carinho. Mas... por favor me leve para casa.
- Isso tudo é verdade? Disse Thales
- Não acredita em mim?
- Não é que... é bom demais para ser verdade.
- Desculpe Thales. Pode me levar?
- Claro, claro.
Áurea tentou andar, mas seu pé doía tanto... e nem foi preciso dizer nada. Thales a pegou nos braços e a colocou dentro do carro e a levou para casa. Entrou, fez um chá para os dois e imobilizou o pé de Áurea, deu-lhe um remédio para dor e a embalou até que ela adormecesse. E assim foi.
Quando acordou, ele ainda estava ali e ela pediu que ele fosse embora e voltariam a se falar no dia seguinte. Ele fez como ela pedira, e seu coração apertou e no momento que ele bateu a porta se arrependeu do que havia dito.
Não queria ficar sozinha, mas suportou mais aquela dor. Percebeu como era forte e não se deixaria abater mais uma vez, decidiu que seria feliz, não importava como e com quem terminaria sua história, por ora estaria só, mas definitivamente buscaria a felicidade.

Thaís Renata de Lima

A troca


César, um pastor evangélico, poderoso e ambicioso empresário, dono de uma emissora de televisão, tinha uma grande equipe que trabalhava na TV por vinte e quatro horas, igrejas em várias partes do país e um grande público de fiéis. Seu braço direito, Marco, estava sempre fazendo pesquisas e trazendo ideias pra impressionar cada vez mais o público.
Em uma de suas buscas, o assistente descobrira, no Uruguai, uma mulher que dizia não professar nenhuma fé, e que estava sendo muito procurada por fazer milagres. Diante da descoberta, teve uma ideia, que expôs no mesmo dia em que, numa reunião com César, ouviu o ultimato:
- Faz muito tempo que não temos algo realmente chocante. Essas simulações de milagres não podem continuar por muito tempo. Não dá mais audiência como antes.
As investigações de Marco sobre a mulher ainda não tinham trazido resultado concreto, se ouvia sobre os testemunhos de milagres, mais nada. No entanto, pressionado pela fala do pastor, decidiu adiantar em que vinha trabalhando.
- Quero um relatório completo disso, Marco! - disse César.
Horas mais tarde, os dois se encontravam no estúdio gravando um "testemunho de milagre" que iria ao ar naquela noite.
- Vocês têm que ser mais convincentes! Não adianta só falar se não por expressão no seu rosto! Pense, você é a mãe de um menino que acabou de ter a vida salva pelo Senhor Jesus! - disse César, já sem paciência, para a novata.
Diante dessas dificuldades, César exasperado, diz a Marco:
- Quero que você vá até o Uruguai, vá até o inferno, se precisar, e traga essa mulher que faz milagres, aqui!
Uma semana mais tarde Marco chega ao seu destino. Sem muitas fontes procura o jornal que noticiara a história da mulher milagreira. Não foi difícil para ele convencer o jornalista a lhe dar informações sobre o paradeiro da mulher: mentiu que a filha estava morrendo de leucemia.
Teve então que viajar até o interior do país. Chegou em um vilarejo habitado por indígenas, na sua maioria. Mesmo falando um espanhol cheio de sotaque, conseguira ganhar a confiança do povo daquele lugar. Filmou vários relatos e testemunhos dos nativos. Foi hospedado por uma família que havia testemunhado o poder da mulher que fazia milagres. Ouvira, entre outras, a história de um certo senhor, conhecido por nome Antônio, que feriu o pé trabalhando na plantação. Em pouco tempo o pé começou a apodrecer. Este senhor fora um dos primeiros a recorrer à milagreira e, minutos depois da visita, só se via a cicatriz da ferida.
- Como a milagreira fez? Ela te benzeu, orou? Perguntou Marco.
- Ela me deu um papelzinho enrolado, com alguma coisa escrita. Orou, falava numa língua que não conheço, e me deu isso aqui (Antonio mostrou um patuá que estava usando no pescoço por debaixo da camisa), disse que nunca poderei tirar.
Assim que amanheceu, Sr. Antonio fez questão de levar Marco até a milagreira (assim era chamada pelos nativos e pela imprensa).
Entraram matagal adentro, avançaram por uma trilha durante cerca de quinze minutos até chegar em uma cabana precária, isolada do mundo. Impressionado, Marco fotografou a região antes de entrarem.
O senhor bateu na porta, que aparentemente estava fechada, mas se abriu revelando a imagem de uma mulher madura com ascendência indígena marcada no sangue e na face. A única fonte de luz vinha da porta aberta pelos visitantes.
- Senhora! Antônio veio em sua direção e beijou sua mão.
- Como se sente, Antônio? Perguntou a milagreira.
- Muito bem! Trouxe alguém que precisa de sua ajuda.
- Sim, eu sei, pode ir para sua casa, Antônio!
O homem se foi sem maiores perguntas. Ficou sozinha com Marco.
- Você não está doente.
Marco engoliu a seco, impressionado com a sabedoria da mulher. Percebeu que teria de ser cuidadoso.
- Eu não estou doente, senhora. Nem ninguém da minha família. Mas há muita gente doente de onde eu vim, e elas precisam de sua ajuda.
- Pode me chamar de Bel. Pediu a milagreira.
- Por que mora aqui, só e isolada, nessa cabana, nessas condições?
- Para não me contaminar com as influências materiais. Dedico-me a tornar a vida das pessoas mais longa aqui na terra, para isso tenho que estar envolta por outras forças.
- Preciso te pedir que venha comigo para meu país. Só por um tempo, se possível.
- Eu sabia que esse dia chegaria.
Então foram, Marco e Bel, para a capital. Pegaram o avião em direção a São Paulo.
César e sua equipe estavam preparando o grande público para uma surpresa. Haveria um evento, um grande show a céu aberto com a promessa de milagre coletivo, mas antes disso aproveitariam muito a presença de Bel para aumentar a credibilidade e a audiência da emissora.
Apesar do cansaço, Marco foi logo para a emissora, atendendo ao chamado de César.
- Que grande ideia Marco! Você não tem noção da legião que atraímos com essa milagreira. Aqueles vídeos que você mandou estão incrivelmente convincentes. Anunciamos que vamos apresentá-Ia no programa de hoje à noite.
- César, eu falei para ela que amanhã veríamos isso, como combinamos, lembra-se? Ela saiu do meio do mato, não está acostumada com TV e a fama. Temos que prepará-Ia!
- Vamos impressionar o público, HOJE! Já temos o ator que simulará um paraplégico e um milagre ocorrerá na frente das câmeras!
Marco conhecia César, ele teria que dar um jeito. Pegou o carro e foi até o hotel em que Bel foi hospedada, prepará-la para aquela noite.
Depois do almoço, Bel e Marco seguiam rumo à emissora, quando o celular de Marco toca.
- O ator contratado pra essa noite está doente, foi hospitalizado e não vem mais! – dizia César, do outro lado da linha.
- Tudo bem. Resolverei o problema.
Ainda de dentro do carro Marco ligou para um primo, pedindo para fazer esse favor. Ele achou graça, aceitou prontamente e disse que estava indo naquele instante para o estúdio.
Já no estúdio, César veio ao encontro de Marco e Bel, que era quase que o tempo todo traduzida por Marco. Mal chegara no Brasil e já não se sentia nada confortável, isso era visível. Foram interrompidos por alguém que veio anunciar a chegada de Pedro, o novo ator, primo de Marco. Bel ficou de longe observando quando ele entrou no salão e alguém chegou com uma cadeira de rodas e ele se sentou.
- Bel, isso foi feito de última hora. Tem muita gente esperando ver você fazer um milagre, não tivemos tempo de trazer um doente então só faça de conta que você está fazendo um milagre com ele. É um ator.
Horas depois, começavam a gravar.
- Senhoras e senhores, como eu havia prometido, aqui está um instrumento de Deus em pessoa, que vem com exclusividade pra "Deus é Salvação". Fazendo milagres em massa, salvando e curando almas e corpos. Apresentamos agora, de primeira mão, a Irmã BeI.
- Aqui está um fiel paraplégico.
Após uma longa encenação em que o pastor perguntava a Pedro quem era, de onde vinha, como adquirira a doença, de forma bastante dramática, César continuou:
- Você acredita que essa mulher aqui é um instrumento de Deus em pessoa, meu jovem?
- Claro, com toda fé no Senhor Jesus.
- Senhoras e senhores, agora vocês presenciarão o primeiro de muitos milagres realizados por Bel na “Deus é Salvação”.
Por trás das câmeras Marco fez um gesto para Bel por o papel na boca de Pedro.
Bel estava suando e respirando forte. Num gesto rápido ela coloca o papelzinho que lhe deram na boca de Pedro como se fosse o real, usado por ela nos seus verdadeiros milagres.
Pedro começou a mover vagarosamente os pés, fez como se estivesse emocionado. Apóia-se em César diante das câmeras e se levanta. Todos atrás das câmeras começam a aplaudir. Bel se retira sem dizer nada.
- Está perfeito! Disse César animado e satisfeito com o resultado."É isso mesmo, isso vai ao ar!".
Todos iam se retirando quando Pedro chamou Marco.
- Marco, não consigo mover minhas pernas!
Marco olhou para trás e não viu mais BeI.
- Você deve estar impressionado garoto. Encarnou de vez a personagem, isso vai passar logo! Disse César sem dar importância.
- Não sinto mais minhas pernas! Pedro começou a gritar.
Mandaram que ele fosse levado para o hospital e continuaram lá, pois havia muito trabalho. O programa foi colocado no ar e fez muito sucesso, recordes de audiência.
Nessa noite Marco não conseguiu dormir, sentia algo ruim. Se arrependera de ter trazido BeI. Afinal não se sabia muito sobre ela.
No dia seguinte teria dois cultos, exibidos ao vivo com a presença de BeI. Um deles foi logo às 11:00 da manhã. O local estava lotado de fiéis. Havia até uma banda que compôs músicas e letras especiais pela presença de Bel. Colocaram-na no centro do palco, logo ao lado Marco que seria o tradutor, César o pastor e os funcionários que filmavam. Havia muito barulho, crianças pequenas começavam a chorar, César, nervoso, abafava os choros pedindo que a banda tocasse.
Prolongou-se a reunião por mais uma hora e meia e, ao final, algumas pessoas escolhidas ficaram, para tocar em Bel, tudo estava sendo filmado!
Terminado o show, Marco procurou César preocupado.
- Você acha que é normal o que aconteceu com meu primo? Liguei no hospital e disseram que Pedro ainda não sente as pernas, nos exames não consta nada!
- Já disse que isso é psicológico. Você quer que eu faça o quê? Digo a essa imensidão de gente que Bel é o diabo e que eu me enganei?
- Só sei que não estou gostando nada disso, César.
César mandou avisar que para o culto da noite não haveria crianças, elas ficariam numa sala reservada para não ter o mesmo imprevisto que de manhã.
- Mandei fabricarem quinhentos mil patuás, tem só um papelzinho lá dentro, leve para os aposentos de Bel e pede para ela benzer, ou sei lá, fazer o quê. Vamos vender isso hoje! Foram as palavras do pastor.
Marco foi para a sala reservada a Bel. Conforme se aproximava sentia que sua pressão subia, começou a ter náuseas, a transpirar.
- Bel? Chamou-a, não obteve resposta. Resolveu abrir a porta do quarto que estava encostada.
Ao olhar para dentro, viu que o quarto se encontrava envolto por uma penumbra. Marco viu Bel ajoelhada, diante de um ser encapuzado, que lhe passava uma energia ruim.
Nesse momento faz-se um barulho no corredor, Marco leva um susto, e grita. Bel acendeu a luz, levantou do sofá no qual estava deitada.
- Desculpe, não sabia que estava dormindo, disse Marco explicando-se. César mandou umas caixas repletas de patuás para você abençoar, que serão distribuídas no culto esta noite.
- Para serem vendidas, você quer dizer?
Marco deixou as caixas no local e se retirou.
Pouco tempo depois Bel foi atrás de Marco dizendo que estava pronto, cada patuá era como se tivesse sido feito por ela mesma. Ele preferiu ignorar o que Bel havia feito ou deixado de fazer. Simplesmente agradeceu e foi procurar César pra mostrar o trabalho feito.
- Perfeito! Chamem um pessoal que irá se infiltrar no meio dos fiéis, vendendo já uma parte dos patuás. Disse César.
Faltava uma hora para o culto começar. As câmeras e os equipamentos de filmagem estavam quase prontos e aproximadamente duzentos e cinquenta pessoas (capacidade máxima no templo de gravação) estavam em seus lugares. Havia ainda muita gente do lado de fora insistindo para entrar. Agora faltavam quinze minutos.
A música começou dentro do templo, Marco adentrou acompanhando Bel e os fiéis começaram a aplaudir e a chamar por ela. César já estava em seu posto no centro do palco. Anunciou que logo após o final do culto os patuás seriam ofertados no meio do público. A cerimônia foi mais tranquila, não variou muito o texto em relação ao culto da manhã.
Uma hora e vinte depois, faltando dez minutos para terminar, César ainda dava o sermão quando Marco, sentado num canto ao lado de Bel, notou um pequeno tumulto no meio da multidão. Ele só olhou para Bel que se levantou e foi à frente do palco, interrompendo César.
Ela esticou o braço em direção ao tumulto e começou a falar em espanhol. Marco, ao receber um sinal de César, começou a traduzir simultaneamente.
- Hoje está entre nós uma senhora de setenta anos, seu nome é Lurdes, com um problema crônico de hipertensão, foi trazida carregada pelos filhos. Tragam-na aqui!
Seguranças da emissora foram até lá e a trouxeram logo. Bel segurava um papelzinho que costumava dar aos doentes que a procuravam e um patuá. A túnica que ela vestia não tinha bolsos e Marco e César não sabia de onde ela havia tirado aquilo. Quando a mulher chegara até Bel no palco, ela começou a orar num idioma que ninguém mais sabia, depois a fez tomar a pílula e colocou o patuá no pescoço, pedindo para nunca removê-lo.
Todos ficaram boquiabertos, ninguém havia planejado aquilo. Enquanto isso milhares de patuás eram vendidos ao público, dentro e fora do templo.
- Foi incrível, Marco! Você não planejou isso, foi? Pergunta César.
- Não! Se eu não te conhecesse diria que você havia planejado!
Faltavam cinco dias para o grande show de milagres que seria realizado antes da partida de Bel. Ela havia dito que não queria mais aparecer na mídia antes dessa última apresentação e, nesses dias, milhares de outros patuás foram feitos, benzidos e vendidos. Os milagres de Bel foram notícia em várias redes de TV no país e no estrangeiro.
Marco não se conformava com o que ocorrera com seu primo. Estava levando a culpa por tê-Io convidado a atuar naquele programa e pela consequência. Temia Bel, sabia que ela não representava boa coisa e só queria que aquilo tudo terminasse. Então foi até os aposentos da milagreira.
- Bel, o que você fez com meu primo que não pode mais andar?
- Logo ele voltará a andar!
Marco sentiu um ar sarcástico em Bel, então se retirou sem meias palavras. No outro dia soube que logo de manhã seu primo acordou sentindo as pernas, como se tudo aquilo que passara fora somente um pesadelo. Ainda assim preferiu não agradecer a Bel, e ter o mínimo de contato possível com ela.
Chegava o dia do grande show. Alugaram um estádio e montaram uma tenda do tamanho do campo para abrigar os milhares de pessoas que marcariam presença. A previsão do tempo havia anunciado temperaturas altas, mínima de trinta e dois graus para aquele dia.
Enfim o domingo tão esperado, tudo seria transmitido ao vivo. Havia três bandas, mais quatro pastores que revezariam com César, cinquenta seguranças, e dezenas de obreiros trabalhariam nesse dia. Contavam vinte mil pessoas, todos usavam um patuá de Bel.
Marco recebe um telefonema de sua mãe dizendo que Pedro havia sofrido um ataque cardíaco, morte repentina.
Passadas algumas horas o povo estava eufórico, fazia muito calor e pediam a presença de Bel. César deu permissão. As bandas começaram a tocar e, minutos depois, a milagreira entrou. A platéia estremeceu. Muita gente doente havia ido até lá com a esperança de ser curado. Bel foi levada até a frente do palco. Nesse instante todos os pastores e obreiros estavam ali presentes.
O clima dentro da tenda começou a ficar abafado. Bel estendeu os braços em direção aos fiéis e começou a falar simultaneamente o nome de pessoas e a doença que tinham. Marco estava do lado para traduzir, mas começou a passar mal, sentiu o mesmo que quando teve aquela visão de Bel e o Lúcifer no quarto. Sentiu um enjôo muito forte e se retirou indo para fora da tenda tomar ar fresco.
Bel não parava de falar nomes e doenças. Enquanto isso na platéia um surdo começava a ouvir, um cego a ver; os fiéis gritavam a cada palavra que Bel dizia.
O calor se tornava cada vez mais forte ali dentro. Bem ao fundo, a entrada da tenda havia sido fechada para conter a multidão. Uma mãe tentava desesperadamente entrar com seu filho de sete anos na cadeira de rodas. Comovido, um segurança arrisca abrir caminho para eles. A mulher coloca o patuá no pescoço do menino e consegue entrar, mas o espaço não é suficiente para a cadeira de rodas. Alguém empurra a mulher, já dentro da tenda, e ela se separa do filho.
De repente inicia-se um incêndio, toda armação de plástico cai em chamas sobre a multidão que se encontrava ali. O calor era tão intenso que ninguém conseguia se aproximar, todos corriam para longe. Um homem pegou o menino no colo e correu também.
Depois de dez minutos chegou o corpo de bombeiros, já era tarde. Durante semanas essa catástrofe foi notícia no mundo.
O menino no colo do homem dizia sentir as pernas, estava curado, conseguia dar seus primeiros passos. Um grupo de religiosos contatou esse menino, uma das poucas vítimas que sobrevivera à tragédia e ainda afirmava ter sido curado pela milagreira, embora tivesse perdido a mãe no show de milagres.
Disseram a ele para tirar o patuá e entregar a eles, pois estavam em oração e se ele tivesse que voltar a não andar mais, que isso caísse em um dos religiosos.
A família do menino aceitou, assim tiraram o patuá e o abriram. Dentro havia o famoso papelzinho com a escritura:
“SATAN, EU TROCO MINHA ALMA PELA SAÚDE AQUI NA TERRA

Almerides Magalhães

domingo, 11 de abril de 2010

Fênix




Ana viveu nas ruas a vida inteira. Aprendeu a traficar, a abrigar-se da chuva em lugares sujos e sombrios, a tapear a fome com cola e a fugir sorrateiramente da polícia. Lembrava-se vagamente de quando era criança, não conhecia o pai e sabia que a mãe fora prostituta e que, das relações que tivera, nasceram os filhos. Todos os irmãos tornaram-se traficantes. Vira um irmão atear fogo no próprio corpo e uma irmã ser assassinada pelo tráfico, dos outros não sabia nada. Não gostava de lembrar da infância, pois sabia que estava seguindo o mesmo destino de sua mãe, mas não sentia força para mudar isso e nem via expectativa de melhora, o jeito era aceitar.
Faísca, seu companheiro de corres, não tinha uma história diferente da dela, por isso eram cúmplices de tudo. Furtavam, cheiravam e até participavam de orgias juntos. Não havia limites, nem compromisso com nada, havia apenas a liberdade e a parceria de um com o outro.
Era sexta-feira e já estava na hora de ir para a biqueira. O Boca havia depositado toda a confiança neles. Era muita responsabilidade ser gerente da biqueira e Ana gostava, preferia essa vida. Antes fazia programas e muitas vezes tinha que ficar muito “louca” para poder sair com os caras. Agora não, só precisava ser ligeira e isso sabia fazer muito bem.
- E aê, mina, cadê a mercadoria? Os boys tão loco quereno as pedras.
- Fica sussa, Faísca. Eles trouxe bagulho de primeira. Pode pá que os boys vão recebê as pedras inda hoje.
- Fechô.
Nada saía errado. Os boys subiam o morro para comprar vários tipos de drogas e tudo ocorria tranquilamente. Durante o dia a favela era um lugar tranquilo, mas à noite, enquanto, os moradores dormiam, os becos fervilhavam de pessoas comprando e vendendo mercadorias.
Ana gostava de passar à noite trabalhando na favela e não tinha raízes, pertencia ao mundo. Não se prendia a nada, nem a ninguém. Era moça, tinha 16 anos e já era mãe. Fora mãe aos 12 anos, não tinha vínculo materno e nem ao menos sabia onde estavam os filhos. Um de seus companheiros, o Fera, de vez em quando, ainda dormia com ela, mas não tinha amor. Era apenas atração física.
Era mais um dia de trabalho e a jovem fora para o seu posto. Quando chegou, percebeu que havia algo errado. Faísca veio em sua direção e estava com a expressão de desespero no rosto.
- Mina, miô. Os polícia pegô o Boca e agora não há lei na quebrada. Vambora.
- Tá loco. E a irmandade? Nóis vai dexá os parceros agora? Se nóis fugi, eles vai dizê que nóis é traíra. Qué morrê?
- Não, mas se os polícia pegá nóis, nóis vai preso. Eu num quero sê preso de novo, é mó zica.
Ana fez menção de que ia rebater, mas achou melhor não. Afinal, sabia como as coisas funcionavam e não queria correr riscos. Concordou em fugir, mas sabiam que não seria fácil, pois a favela estava cercada e as chances de serem pegos era grande. Havia muita correria e troca de tiros. Naquele momento venceria quem tivesse mais força e a morte parecia iminente. Entravam e saíam de becos sem encontrar saída. A favela parecia um labirinto e o medo começava a tomar conta.
Faísca se lembrou que o barraco do Bichero estava vazio e seria um bom esconderijo.
- Ana, o barraco do Bichero tá vazio mó cara. Como eu não pensei nisso antes? Vamo pra lá agora.
- Ta loco! O barraco fica próximo do QG. Os polícia ta tudo lá. Nóis morre se voltá.
- A caminhada é a seguinte mina. Nóis póde voltá pr’outro caminho, beleza.
- Num sei. Tô com medo e se miá?
- Pode pá que é nóis. Os polícia não vai vê. Fica sussa.
Começaram a andar, mas Ana sentia o coração apertar, temia por si e pelo amigo. Faísca era seu melhor amigo, considerava-o um irmão.
Chegaram no barraco e por sorte ele não estava trancado. Faísca abriu a porta devagarinho e mal teve tempo de se mover quando sentiu uma dor imensa e começou a ver tudo girar a sua frente. Ana que estava atrás dele só teve tempo de segurar o amigo em seus braços. Lágrimas sentidas corriam de seus olhos. Via escorrer o sangue do peito do amigo que estava baleado e gemia de dor.
- Força, parcero! Força!
Faísca não respondia nada, não havia mais gemidos, apenas um corpo gelado nas mãos da amiga. A cena foi tão forte que Ana desmaiou.
Passaram-se dois anos e Ana ainda sentia muito quando lembrava daquela noite, a morte do amigo a marcara profundamente e após o choque decidiu mudar de vida. Estava casada, tinha dois filhos e um marido que amava muito. Nem de longe lembrava aquela adolescente do passado. Freqüentava a igreja, participava das atividades da comunidade e até possuía um projeto que ajudava adolescentes em situação de rua.

Ikerly